Testamento

O testamento se tornou o instrumento de nomeação do herdeiro, tal como é hoje, durante o Império Romano, embora haja quem afirme que povos mais antigos já fizessem algo similar. Com a queda do Império Romano, e posteriormente com a crescente influência da Igreja Católica, ele se tornou também um instrumento de salvação da alma. Na França dos séculos XIV e XV, todas as camadas sociais passam regular a sucessão por meio do testamento e pode-se dizer que foi nessa época que o instrumento se democratizou. Todo bom cristão deveria deixar um testamento, como se diz na expressão corriqueira, “para seu bem de alma”. Assim, poucos foram os que morreram sem fazê-lo ou, como se diz em latim, ab intestato.

Via de regra, um testamento continha a encomenda de certa quantidade de missas para a alma do moribundo e também para as de seus pais e filhos, para seu anjo da guarda e um ou mais santos de devoção. Além disso, costumava haver a indicação do tipo de mortalha em que o corpo deveria ser envolto e, por vezes, do local onde deveria ser enterrado. Em certos casos, havia ainda orientações sobre as esmolas a serem distribuídas. Concluída a exposição dos últimos desejos relacionados ao lado espiritual, eram apresentadas as disposições relacionadas à herança: nomeação do testamenteiro, dos herdeiros e dos bens a serem repartidos, entre outras.

O assento de óbito que apresento a seguir ilustra bem essa dupla função espiritual-material, embora esteja relatado no texto que existia um testamento propriamente dito, do qual as disposições foram trasladadas.

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Óbito de Jerônima de Araújo – 20/05/1805 – Tabuaço, Viseu – página 1
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Óbito de Jerônima de Araújo – 20/05/1805 – Tabuaço, Viseu – página 2

Aqui a transcrição:

Aos 20 dias do mês de maio de 1805 anos, faleceu da vida presente Jerônima de Araújo, mulher de Antonio Pinto Rebello com todos os sacramentos e foi enterrada dentro da igreja desta freguesia, amortalhada em um hábito de freira e com testamento fixado. Entre outras coisas que continha [] testamento, disse que deixa por sua alma cem missas e mais dez pelas almas de seus irmãos e seus pais e ao anjo de sua guarda [dez], pelas suas penitências mal cumpridas dez e a virgem Maria Nossa Senhora dez, um ofício de corpo presente tudo por uma vez somente. E disse mais ela testadora que deixava [metade] da[s] casa[s] em que vivia a Francisco Pinto, filho de seu marido Antonio Pinto Rebello, e os mais bens deixa a seus sobrinhos de Santa Leocádia, os quais [constituía] por seus herdeiros e deixava por seu testamenteiro seu marido Antonio Pinto para lhe dar cumprimento ao seu bem da alma, sem recompensa, disto lhe deixava a metade dos bens móveis que [] por sua morte sua[s] casa[s] em que vive e na falta do seu marido a seu sobrinho Francisco Antonio. Declarou mais que deixava a metade da[s] sua[s] casa[s] em que [] a Francisco Pinto, filho de seu marido assim como também a metade dos seus bens móveis aos dito seu marido Antonio Pinto para dar cumprimento a seu bem da alma como atrás fora declarado e isto e não se continha mais no dito testamento. [] mandei fazer este assento que assinei dia, mês ut supra. – o pároco Manoel José []

Embora no século XVIII o testamento já pudesse ser registrado na forma pública, isto é, redigido por tabelião em cartório, em Portugal, principalmente longe dos grandes centros urbanos, o costume era fazer testamento aberto, escrito pelo próprio testador ou outra pessoa. A Igreja por muito tempo se opôs a abrir mão, em favor do Estado, do direito de registrar testamentos, o que só ocorreu a partir das reformas liberais e laicizantes do século XIX.

Dada essa disputa e as diversas formas como se registravam os testamentos em Portugal, localizar hoje esses documentos para fins genealógicos não é uma tarefa muito fácil, pois podem estar dispersos por arquivos paroquiais, notariais e de outras entidades.


José Araujo é linguista e genealogista amador.

Sacramentos

Quem leu o texto de apresentação deste blog sabe que o foco é a genealogia luso-brasileira, o que envolve duas nações de fortíssima tradição católica, e os assentos de batismo, casamento e óbito, que exemplificam quase todos os textos, são documentos que passaram a existir oficialmente a partir do Concílio de Trento (1546-1563).

O que talvez não tenha ficado explícito até agora é que esses documentos se relacionam a alguns dos sete sacramentos da Igreja, a saber:

  1. Batismo
  2. Confissão, penitência ou reconciliação
  3. Eucaristia
  4. Confirmação ou crisma
  5. Sagrado matrimônio
  6. Ordens sagradas
  7. Unção dos enfermos

Fica evidente, então, que assentos de batismo estão ligados ao ritual em que se recebem os sacramentos de mesmo nome. Os assentos de casamento, por sua vez, estão ligados aos sacramentos do sagrado matrimônio. Nos assentos de óbito, enfim, era usual que o pároco fizesse menção aos sacramentos que o moribundo havia recebido antes da morte.

Havia quem morresse de repente e sem receber os sacramentos, como no seguinte exemplo, de um tio-avô de minha bisavó paterna:

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Óbito de José Pinto do Souto Rebello – 20/02/1842 – Barcos, Tabuaço, Viseu

Aqui a transcrição:

Aos 20 dias do mês de fevereiro do ano de 1842, morreu José Pinto do Souto Rebello, viúvo que ficou de Bárbara Ribeiro. Não recebeu os sacramentos por morrer de repente. Testou, mas não apresentaram o testamento seus herdeiros, o motivo porque não faço lembrança []. No seguinte dia foi sepultado dentro da igreja de Nossa Senhora da Assunção da vila de Barcos. E para constar fiz este assento que assino. Era ut supra. – o reitor Antonio Rodrigues Pinheiro

Mas o esperado era morrer “tendo recebido todos os sacramentos”, como se vê no exemplo abaixo, de uma filha do tal tio-avô.

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Óbito de Hellena Pinto do Souto – 9/04/1872 – Barcos, Tabuaço, Viseu

Aqui a transcrição:

Aos nove dias do mês de abril do ano de 1872, nesta freguesia de Barcos, concelho de Tabuaço, diocese de Lamego, na casa de número 19, às quatro horas da manhã, faleceu tendo recebido todos os sacramentos da Santa Igreja um indivíduo do sexo feminino por nome Helena Pinto do Souto, de idade de 60 anos, de estado solteiro e profissão proprietária, natural desta freguesia, moradora na Rua da [Cainha], filha legítima de José Pinto Rebello e Bárbara Ribeiro, já defuntos, a qual fez testamento, não deixou filhos e foi sepultada no cemitério público desta freguesia. E para constar se lavrou em duplicado este assento que assino. Era ut supra. – o abade Antonio Augusto Tavares

Se a expressão era “todos os sacramentos”, podemos entender que devia haver mais de um relacionado a esse momento. E de fato havia: ao moribundo, era normalmente ministrado o sétimo sacramento, antes conhecido como extrema-unção, mediante unção com um óleo sagrado.

O moribundo que tivesse condições poderia também confessar seus pecados e pedir a absolvição ao pároco, podendo receber uma penitência, porém o assento abaixo menciona algo mais.

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Óbito de Maria Clara – 9/11/1807 – Barcos, Tabuaço, Viseu

Aqui a transcrição parcial:

Aos nove dias do mês de novembro de 1807, faleceu da vida presente Maria Clara, viúva que ficou de Luis de Amaral, natural desta vila de Barcos. Recebeu os sacramentos da penitência, sagrado viático e extrema-unção e seu corpo foi sepultado dentro desta igreja no dia dez do dito mês em que se lhe fez um ofício de corpo presente. Também fez testamento [fechado] em que dispôs além de outras coisas em quanto ao [] o seguinte: […]

Segundo a Wikipédia, “a palavra viático vem do latim viaticum (de via, caminho), com o significado de provisão para o caminho”, que para a Igreja é “o caminho da terra, a vida corporal, mas também o caminho do céu, ou seja, a entrada, após a morte, na vida eterna”.

O viático nada mais é do que a comunhão eucarística dada a quem está prestes a morrer. O moribundo que pudesse deglutir receberia a eucaristia sob a forma do pão consagrado, enquanto o que não pudesse a receberia apenas pelo vinho.


José Araújo é linguista e genealogista amador.

Fonte: http://www.catolicismoromano.com.br/content/view/162/43/

Morte

Se no último século expectativa de vida aumentou e a taxa de mortalidade – principalmente nos primeiros anos de vida – diminuiu muito em Portugal, o cenário era bem diferente nos idos de 1800: morria-se muito e cedo. Embora houvesse pessoas longevas, mortes de crianças e adultos jovens eram comuns.Leia mais »

Google

A pesquisa genealógica é realizada principalmente em fontes primárias – assentos paroquiais de batismo, casamento e óbito; testamentos; cartas; jornais e revistas entre outros -, mas também pode recorrer a bases de dados criadas a partir das já citadas fontes primárias e mesmo a pesquisas genealógicas já produzidas. Outra ferramenta útil, embora ao mesmo tempo superestimada e subestimada, é o motor de buscas Google.Leia mais »