Mortalidade

Maria Antonia Lopes afirma que, “entre 1860 e 1890 a mortalidade portuguesa rondava, em anos normais, os 21% a 25%, ultrapassando os 30% em anos de crise”. E afirma ainda que a mortalidade infantil nos primeiros doze meses de vida era elevadíssima. Não seria irracional acreditar que esses valores pudessem ser menos elevados em décadas anteriores do mesmo século.

Um exemplo que trago de minha árvore familiar poderia bem ilustrar esses dados. Manoel de Macedo ( – 1833) era tio-avô de minha bisavó paterna e casou-se em 23/10/1804 com Francisca Barradas. Desse casamento resultaram nove filhos cujos registros pude encontrar até o momento. Desses nove dois – Damião e José Antonio – sobreviveram até a idade adulta, casaram-se e tiveram filhos. De outro apenas encontrei o registro de óbito, porém não há indícios de que tenha falecido na juventude.

Os seis restantes faleceram ainda na infância, e suas idades foram registradas nos assentos de óbito, cujos trechos relevantes transcrevo abaixo:

  • José (f. 26/01/1809): “dois anos e cinco meses”
  • Maria (f. 29/10/1810): “um ano e quatro meses”
  • Luísa (f. 9/06/1819): “três anos”
  • Leonor (f. 18/06/1824): “dois anos, pouco mais ou menos”
  • Leonarda (f. 4/04/1833): “sete anos, mais ou menos”
  • Leonarda (f. 6/04/1833): “sete anos”

A título de exemplo, apresento o assento de óbito de José, que provavelmente não foi o primeiro filho do casal.

infantil
Óbito de José – 26/01/1809 – Barcos, Tabuaço, Viseu

Aqui a transcrição:

Aos 26 dias do mês de janeiro do ano de 1809, faleceu da vida presente Manoel, filho de Manoel de Macedo e de Francisca Barradas, digo, José, filho de Manoel de Macedo e de Francisca Barradas, de idade de dois anos e cinco meses como consta do livro dos batizados [à f] 13. Foi sepultado nesta igreja de Barcos aonde tinha sido batizado. E para constar fiz este termo de assento dia, mês e ano ut supra.

As causas dos óbitos na infância são diversas e abrangem desde más condições sanitárias, má alimentação, acidentes, doenças e epidemias. Na época, nem sempre se registravam as causas de óbito, portanto não saberemos por que o casal Manoel e Francisca perdeu tantos filhos em tão tenra idade.


José Araújo é linguista e genealogista amador.

Alcunhas

Alcunha, segundo o dicionário Priberam, é o termo que qualifica uma pessoa em função de alguma particularidade física ou moral atribuída a ela. É o que no Brasil se chama de apelido. Uma pessoa de cabelos louros pode ser chamada de alemã ou galega, enquanto uma que está acima do peso costuma ser chamada de gorda. Em geral, a alcunha tem uso cotidiano e coloquial, não chegando a possuir registro formal em documentos, exceto, claro, quando se trata de alguma celebridade que incorpora a alcunha pessoal como parte de sua identidade. Mas nem sempre foi assim.

Em séculos anteriores, quando o uso de sobrenomes ainda não era sujeito a regras formais, era comum que uma pessoa tivesse sua alcunha identificada em registros paroquiais. Foi o que ocorreu com Antonio dos Santos (? – 1841), meu antepassado de cinco gerações, que recebeu a alcunha de morgado, termo atribuído ao filho mais velho a quem era garantido o direito inalienável de herança dos bens paternos. A atribuição dessa alcunha a José Antonio fica evidente no assento de casamento de sua filha Clara Maria, do qual se vê um trecho a seguir:

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Casamento de José Martins e Clara Maria – 9/06/1778 – Barcos, Tabuaço, Viseu

Aqui a transcrição:

Aos nove dias do mês de junho de 1778 anos, nesta paroquial igreja colegiada de Nossa Senhora da Assunção de Barcos, na minha presença e das testemunhas abaixo declaradas, e na forma do sagrado concílio tridentino e constituição deste bispado, contraíram de presente o sacramento do matrimônio José Martins da aldeia de Sendim, freguesia da mesma vila, de que me apresentou correntes as proclamas, e onde foi batizado, filho legítimo de Manoel Martins e Bernarda Soeira, da dita aldeia e freguesia, onde foram batizados, recebidos e estão sepultados, sendo o primeiro matrimônio da parte de ambos, e Clara Maria, filha legítima de Antonio dos Santos, o Morgado de alcunha, e de Anna da Assunção, todos naturais desta vila de Barcos, em cuja igreja foram batizados e os ditos pais foram também recebidos, sendo primeiro matrimônio […]

O interessante nesse caso é que o que era apenas alcunha para Antonio dos Santos se tornou sobrenome para seus filhos e netos, como se vê abaixo no assento de óbito de seu neto Antonio de Araújo Morgado, filho de seu filho José Morgado:

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Óbito de Antonio de Araújo Morgado – 27/09/1868 – Barcos, Tabuaço, iseu

Aqui a transcrição:

Aos 27 dias do mês de setembro do ano de 1868, nesta freguesia de Barcos, concelho de Tabuaço, diocese de Lamego, na casa número um, às quatro horas da tarde, faleceu, não tendo recebido sacramentos da Santa Igreja, um indivíduo do sexo masculino por nome Antonio de Araújo Morgado, de idade de 66 anos, de estado casado com Anna da Silva, natural desta freguesia, morador na rua do fundo da vila, filho legítimo de José Morgado, natural da freguesia de Adorigo deste concelho, profissão proprietário, e de Josefa de Araújo, de profissão governo da casa, o qual não fez testamento, deixando filhos e foi sepultado na igreja desta freguesia por não haver cemitério público. E para constar se lavrou em duplicado este assento que assino. Era ut supra. O abade Antonio Augusto Tavares

Casos como esse podem explicar por que hoje existem sobrenomes como Castanho, Crespo, Magro e Manso.


José Araújo é linguista e genealogista amador.

Surpresa

Até que a morte os separe? Ou até que ela os una? É tentador fazer uma leitura romântica dos falecimentos destes meus antepassados de oito gerações, com intervalo de apenas alguns dias. Por uma dessas coincidências do destino, os registros acabaram ficando na mesma página do livro paroquial.

Veja os assentos e as respectivas transcrições:

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Óbito de Anna Correa – 23/09/1738 – Vilar de Maçada , Alijó

Anna Correa, do lugar de Francelos, mulher de Leonardo Gonçalves, do mesmo lugar desta freguesia de Vilar de Maçada, faleceu com todos os sacramentos aos 23 dias do mês de setembro do ano de 1738 e foi sepultada dentro desta igreja de Vilar de Maçada e não fez testamento. E para constar fiz este era ut supra. [] Antonio [] e Brito

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Óbito de Leonardo Gonçalves – 29/09/1738 – Vilar de Maçada , Alijó

Leonardo Gonçalves, do lugar de Francelos desta freguesia de Vilar de Maçada, faleceu com todos os sacramentos aos 29 dias do mês de setembro do ano de 1738. Foi sepultado dentro da igreja e não fez testamento. E para constar fiz este era ut supra. [] Antonio [] e Brito

Esse tipo de surpresa ou coincidência não se encontra todos os dias, e é fácil fazer uma leitura romântica – o marido morreu de amor. No entanto, como a estimativa é de que não fossem idosos, o mais provável é que tenham contraído alguma doença e falecido. O fato é que talvez eu nunca descubra a razão.


José Araújo é linguista e genealogista amador.

Religiosos

Aos nove dias do mês de novembro de 1807, faleceu da vida presente Maria Clara, viúva que ficou de Luis de Amaral, natural desta vila de Barcos. Recebeu os sacramentos da penitência, sagrado viático e extrema-unção e seu corpo foi sepultado dentro desta igreja no dia dez do dito mês em que se lhe fez um ofício de corpo presente. Também fez testamento [fechado] em que dispôs além de outras coisas em quanto ao [] o seguinte: que seu corpo fosse sepultado na igreja matriz desta vila, e [] conforme o uso e costume, amortalhada com um hábito com ofício de corpo presente e, sendo dia impedido, no sucessivo, acompanhada com  as [] das confrarias, às quais se dará de esmola, por uma vez somente, a do Santíssimo, mil e duzentos réis, e acada uma das outras [] das almas o [] de um alqueire de pão que então tiver a cada qual e por minha alma se dirão cem missas, e mais de tenção particular que deixo [] 23 de esmola costumada e uma vez somente. E [] dos bens temporais que deixava [para sempre] sua filha Maria Theresa o terço de seus bens, que das suas últimas disposições testamentárias [bem de alma] [] lhes restassem, com obrigação de contribuir anualmente ao seu filho [Frei] Francisco de Jesus, com a tença de 24.000 réis enquanto vivo for, à cuja tença serão sempre obrigados os bens do terço [e para onde quer que passarem, irão onerados] [] até a hora em que ele faleça, cujo terço [] no campo do [] com todas as suas árvores e mais [] também disse a dita testadora que nomeava sua filha Maria Theresa por sua testamenteira para dar cumprimento ao seu bem da alma, e mais disposições testamentárias com o tempo de três anos para dar conta do seu cumprimento [] juízo a que tocar, e na sua falta ao meu genro Antonio de Macedo, de quem espero inteira satisfação e por verdade fiz este termo de assento que assinei na ausência do respectivo pároco, que estou substituindo, era mês e ano ut supra. Pelo respectivo pároco. Padre Manoel Duarte dos Santos

Frei Francisco de Jesus foi tio-avô de meu bisavô paterno. Maria Clara, sua mãe, teve outro filho que seguiu a vida religiosa: José Pereira da Motta, sobre quem falei em outro texto. O interessante neste longo assento de óbito são as disposições testamentárias de Maria Clara, que deveria ser uma senhora de algumas posses, de cuja administração resultaria a tença de 24.000 réis que frei Francisco deveria receber enquanto vivo.

Corrobora a interpretação de que Maria Clara era uma senhora de posses o fato de ter outro filho religioso, pois a ordenação religiosa só ocorria a partir de uma detalhada investigação dos antecedentes do candidato – a inquirição de genere – cujas despesas ficavam por conta do interessado. Além disso, aquele candidato que buscasse a ordenação deveria ter condições financeiras ou patrimônio que garantisse sua sustentação.

Aqui se vê o assento original:

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Óbito de Maria Clara – 9/11/1807 – Barcos, Tabuaço, Viseu – Página 1
PT-ADVIS-PRQ-PTBC03-003-0001_m0016_Óbito de Maria Clara_2
Óbito de Maria Clara – 9/11/1807 – Barcos, Tabuaço, Viseu – Página 2

José Araujo é linguista e genealogista amador.

Cunhada

Levirato ou levirado – de levir, cunhado em latim – é o nome que se dá ao casamento celebrado entre um homem e a viúva de um de seus irmãos que não deixou descendente do sexo masculino. Trata-se de um costume citado já no Velho Testamento e consta que ainda seja praticado em algumas comunidades da Ásia.

O exemplo que apresento, extraído de minha árvore, não é um casamento levirato, como você poderá constatar pela leitura do assento de casamento exibido abaixo, mas não deixa de ter sua curiosidade.

cunhada
Casamento de Luís Maria e Antonia Rosa – 13/06/1819 – São Miguel de Lobrigos, Vila Real

Aqui a transcrição:

Luis Maria do Nascimento, do lugar de Santa Marta, viúvo que ficou de Maria Benedicta, filho legítimo de José Bento, do reino da Galícia, e sua mulher Maria Theresa, do lugar de Santiago de Fontes, isento de multa, neto paterno de João Antonio Gonçalves e de Maria Gonçalves, do reino da Galícia, feitas as denunciações e [] do breve pontifício em que foram dispensados por ser casado com a irmã da [esposa] abaixo declarada e da [], se receberam com Antonia Rosa, filha legítima de Antonio José Coelho e de sua mulher Ana Joaquina da vila de Santa Marta desta freguesia, neta paterna de Manoel Coelho e de Isabel Maria da mesma vila, e pela parte materna de Manoel Pereira Valente e sua mulher Thereza Angelica, ambos da freguesia de Tarouca, do bispado de Lamego, se receberam, digo, com palavras de presente em 13 de junho de 1819 em minha presença e das testemunhas que [houve muitas] e Francisco Antonio de São Miguel de Lobrigos e o reverendo padre José de Aquino, que para constar fiz este dia mês e ano ut supra.

A partir dessa e de outras fontes pesquisadas, descobri que Luis casou-se com Maria Benedicta em 25 de fevereiro de 1811, enviuvou e casou-se com a irmã dela, Antonia Rosa, em 13 de junho de 1819. No breve período em que foram casados, Luis e Maria parecem não ter tido filhos, pois não foram encontrados assentos de batismo relacionados ao casal. O assento de óbito de Maria Benedicta também não foi encontrado, o que pode significar que ela faleceu em outra paróquia.

Já do casamento com Antonia resultaram dois filhos: Maria Augusta, que depois se casaria com o Tenente Caetano Pinto Rebello e teria oito filhos, e Francisco, que faleceu com menos de dois anos de idade. Abaixo se pode esse ramo da árvore reconstruído a partir das provas documentais.

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Além da curiosidade, o caso aqui descrito demonstra a necessidade da busca de todos os registros disponíveis para a correta elaboração da árvore familiar e narração da história da família.


José Araújo é linguista e genealogista amador.