Endogamia

Os escravos preferiam unir-se com companheiras da mesma origem étnica. Chama-se a esse fenômeno endogamia. | Mary Del Priore – Histórias da Gente Brasileira – Volume 1

A endogamia nada mais é do que o casamento entre iguais, seja a igualdade definida em termos étnicos, religiosos ou financeiros. O fenômeno não estava restrito aos escravos africanos e mesmo entre eles não se sustentou quando o tráfico escravagista se intensificou no século XIX, como afirma Mary Del Priore na obra citada.

Um conhecido exemplo de endogamia por motivos religiosos se observou entre os judeus, que tiveram uma convivência difícil com as comunidades locais na Espanha e em Portugal nos séculos passados. Por professarem uma religião não proselitista, só lhes restava o casamento entre os seus, fenômeno que acabou se perpetuando mesmo entre aqueles que, forçados à conversão ao catolicismo por D. Manuel,  mantiveram seus costumes de forma privada – conhecidos como criptojudeus.

Quanto à endogamia por razões de poder financeiro ou domínio territorial, há o caso dos nobres, que casavam suas filhas de forma a manter ou ampliar seus domínios territoriais e financeiros. Além dos nobres, havia famílias abastadas que casavam seus filhos de forma a ampliar suas posses ou talvez apenas manter os relacionamentos entre seus iguais.

Creio ter encontrado em minha árvore familiar alguns casos de endogamia. Isso ocorreu no ramo da família que chamarei de Rebello, oriundo de Viseu. O patriarca desse ramo é Antonio Pinto Rebello (? – 1808), conhecido como cirurgião, de quem já falei em outro texto.

Embora, o ofício de cirurgião tenha por muito tempo sido considerado menor por envolver o uso de habilidades manuais, as evidências documentais sugerem que Antonio Pinto Rebello era um homem de posses, pois teve um filho médico – José Pinto Rebello ou José Pinto do Souto. Ter um filho médico ou padre exigia recursos materiais que não estariam disponíveis para um simples agricultor. A profissão de José Pinto Rebello surge no assento de batismo de Teresa, sua neta.

Aos sete dias do mês de dezembro do ano de 1824, nesta igreja de Nossa Senhora da Assunção e colegiada de Barcos, batizei solenemente, digo, batizou de minha [licença] e pôs os santos óleos o padre Jose de Amaral Anjo a Teresa, filha de Jose de Menezes e Teresa [Emília] do bispado de Pinhel, e Theresa Amália, natural desta freguesia, sendo primeiro matrimônio da parte de ambos. A batizada tinha nascido a 28 do dito mês. Neta paterna de José Pinto do Souto e sua mulher Bárbara Ribeiro, naturais desta freguesia, e pela materna neta de Isidro de Almeida e sua mulher Ermelinda, naturais de [Serrinho], bispado de Pinhel, digo, neta [paterna] de Isidro de Almeida e sua mulher Anna Ermelinda, e pela materna neta de José Pinto do Souto e Bárbara Ribeiro, desta freguesia. Foram padrinhos o médico José Pinto Rebello, [] na Ervedosa, [] por procuração [] Manoel Pinto [Sequeira] e sua mulher Rita de [], desta freguesia. Foram testemunhas Antonio Duarte, sacristão nesta colegiada  [] de [Araújo], desta vila. Para constar fiz este assento, dia, mês e ano ut supra.

Theresa Amália, filha de José Pinto do Souto e mãe da criança batizada, por sua vez, era casada com um militar. José de Menezes Sá Almeida, seu marido, foi identificado como alferes no assento de casamento deles, transcrito abaixo.

Aos nove dias do mês de junho do ano de 1822, nesta freguesia de Nossa Senhora da Assunção e colegiada de Barcos, na minha presença e das testemunhas abaixo nomeadas, e na forma do concílio tridentino e constituição deste bispado, receberam de presente o sacramento do matrimônio, com licença [e] banhos pelo Exmo. Reverendo [] Monsenhor Bispo, José de Menezes Sá Almeida, alferes [Caçadores] do Número nove, filho legítimo de Isidoro de Almeida e D. Anna Ermelinda de Serrenho, bispado de Pinhel, e Theresa Amália Pinto, filha de José Pinto do Souto e Bárbara Theresa Ribeiro, naturais desta freguesia de Barcos, de que foram testemunhas Manoel Pinto Serqueira, e o padre Antonio Cardoso, [] desta colegiada. E para constar fiz este termo, dia, mês e ano ut supra. – o pároco Serafim Duarte dos Santos

A carreira militar era uma opção desejada pelos jovens do século XIX, pois era meritocrática e alimentava o ideal romântico do herói da pátria. É importante observar também que a mãe do alferes era uma mulher de alguma distinção, pois recebeu o tratamento de Dona, o qual era reservado “a senhoras com algum relevo na sociedade, sem que isso significasse pertença à nobreza”, como explicam Queiroz e Moscatel.

O mesmo pode ser dito sobre a mulher do alferes, Theresa Amália, pois tratamento idêntico lhe foi dispensado por quem lavrou seu assento de óbito, que está transcrito abaixo.

Aos nove dias do mês de maio de 1862, às duas horas da noite, na casa da Rua da Cainha desta freguesia de Nossa Senhora da Assunção de Barcos, concelho de Tabuaço, distrito eclesiástico de Barcos, diocese de Lamego, faleceu D. Theresa Amália, costureira, da idade de 76 anos, viúva de José de Menezes, natural e paroquiana desta freguesia, filha legítima de José Pinto Rebello do Souto e Bárbara Ribeiro, naturais desta freguesia, neta paterna de Antonio Pinto Cirurgião e Maria Josefa, esta natural de Tabuaço, aquele desta freguesia de Barcos, e materna de Manoel Fernandes, natural desta freguesia, e Luisa Ribeiro, da freguesia de Tabuaço. Não fez testamento, deixou filhas. Recebeu os sacramentos da penitência, da eucaristia e não recebeu extrema-unção por não darem aviso. Foi sepultada no dia dez do supradito mês e ano na igreja desta freguesia. E para constar lavrei este assento em duplicado que assinei. Era ut supra. – o presbítero abade Antonio Rodrigues Pinheiro

Outro Rebello que merece destaque, enfim, é José Pinto Rebello de Carvalho, também filho do médico José Pinto do Souto, sobre quem publiquei um texto em que ressalto seu perfil de personagem romântico. Ele é apresentado como bacharel no assento de batismo de sua sobrinha, de quem foi padrinho.

Aos 22 dia do mês de março do ano de 1826, nesta igreja de Nossa Senhora da Assunção e colegiada de Barcos, batizei solenemente e pus os santos óleos a Maria Adelaide, que tinha nascido a 21 de fevereiro do dito ano, filha de José de Menezes e Sá, natural do Serrenho, e Theresa Amália, natural desta freguesia de Barcos, sendo primeiro matrimônio da parte de ambos. Neta paterna de Isidro de Almeida e D. Anna Ermelinda do Serrenho, freguesia da Torre, e pela materna neta de José Pinto do Souto e Bárbara Ribeiro, desta freguesia. Foram padrinhos o Bacharel José Pinto Rebello de Carvalho, tio da batizada e sua mulher Maria José Adelaide Ferreira Pinto e, com procuração destes [] Manoel Pinto de Serqueira de [] e sua mulher Rita [] desta vila. Foram testemunhas o padre sacristão Antonio Duarte e o padre Antonio Cardoso de Carrazedo, [ecônomo] nesta colegiada. Para constar fiz este assento dia, mês e ano ut supra. – o pároco Serafim Duarte dos Santos

O bacharel José Pinto Rebello de Carvalho era médico, escritor e teve importante participação na política de seu tempo. Embora ele tenha morrido pobre no Brasil, todas as evidências documentais apresentadas ratificam sua origem em uma família de recursos na região de Tabuaço, Viseu, entre os séculos XVIII e XIX.

matriz
Igreja Matriz de Barcos – Fonte: Município de Tabuaço

Todas as fontes documentais analisadas sugerem que as pessoas citadas relacionaram-se com seus iguais, o que corrobora a interpretação de que seus relacionamentos foram de alguma forma orientados pelo princípio da endogamia.

Casamento

… [o sacramento do matrimônio] se consolidou apenas no século XIII. A partir do Concílio de Trento, em 1545, a Igreja desenvolveu uma doutrina em torno do matrimônio, estabelecendo, inclusive, a necessidade do consentimento dos cônjuges e de seus pais, encarregados de proverem dotes ao casal. | Mary Del Priore – Histórias da Gente Brasileira – Volume 1

Embora fosse considerado uma necessidade para a coabitação entre homem e mulher e o reconhecimento da legitimidade da prole, nem sempre o casamento era uma possibilidade, pois os custos envolvidos eram altos. As taxas que a igreja cobrava pela burocracia matrimonial (banhos e dispensas de consanguinidade) estavam além das posses da maioria da população. Não era, por isso, incomum que os casais vivessem amancebados ou, com a vigência do código civil, casados apenas pelo civil. Muitos ainda protelavam o casamento até os 25 ou 27 anos em regiões como Trás-os-Montes. No sul, ao contrário, casava-se mais cedo, antes dos 24 anos.

No trecho de assento abaixo, extraído de minha árvore de costados, além do registro do casamento, é feito o reconhecimento dos filhos que o casal havia tido, portanto é possível supor que esse casal tivesse vivido amancebado até então.

Casamento de Luis Gonçalves e Maria Pinto
Assento de casamento de Luis Gonçalves e Maria Pinto – 30 de Maio de 1892 – Vila Real, Portugal

Aqui a transcrição:

[…] ele, da idade de 43 anos, solteiro, jornaleiro, natural desta freguesia e na mesma batizado e morador […] ella, da idade de 36 anos, solteira, jornaleira, natural do lugar de Safes desta freguesia, e na mesma batizada, filha natural de Maria Pinto, do referido lugar de Safes, […] reconheceram por seus verdadeiros e legítimos filhos, João Luiz, nascido nesta freguesia no dia 8 de junho de 1882 e na mesma batizado no dia 12 do mesmo mês e ano; Maria dos Anjos, nascida nesta freguesia no dia 6 de maio de 1884 e batizada nesta mesma freguesia no dia 23 do referido ano de 1884; Arcelina, nascida nesta freguesia no dia 6 do mês de junho de 1888 e batizada no dia 12 de julho de 1888; Abel, nascido nesta freguesia, no dia 1º de maio de 1890…

O assento registra ainda que os cônjuges eram jornaleiros, isto é, que trabalhavam na lavoura. O casamento nas regiões agrícolas era coordenado com os ciclos de trabalho e a disponibilidade financeira, sendo provável que aumentasse a frequência após as colheitas. A ocupação e a idade avançada do casal corrobora a interpretação de que o casamento pode ter sido adiado por motivos financeiros.

Antes do casamento, anunciava-se a intenção dos noivos nas portas das igrejas onde assistiam às missas a fim de outros se pronunciassem a respeito de eventuais impedimentos. Também realizavam banhos ou proclamas, em que se afirmavam livre para o matrimônio – batizados, solteiros ou viúvos e não prometidos a outros. Finalmente, se houvesse entre eles algum grau de parentesco até o quarto grau, era necessário obter no bispado uma dispensa de consanguinidade.

Quanto à celebração do casamento, era costume evitar a Quaresma e o Advento. Evitava-se também o mês de agosto e as terças e sextas-feiras, por serem considerados azarentos. Em minha árvore de costados, de 24 casamentos analisados, dois ocorreram numa terça-feira (21 de janeiro de 1817 e 9 de junho de 1868) e nenhum no mês de agosto.

Os noivos vestiam preto, costume que perdurou entre as camponesas até as primeiras décadas do século XX. O vestido branco da noiva não se tornou hábito até a metade do século XIX, e ainda assim apenas se popularizou entre as elites. Também não havia troca de alianças, costume que apenas se tornou frequente na transição do século entre as classes mais elevadas e não era observado entre os camponeses de muitas regiões ainda na década de 1940. Muitos dos costumes que se tornaram habituais no século XX se deveram à influência de manuais de etiqueta traduzidos do francês, e sua influência inicial se deu nos centros urbanos, só mais tarde chegando às províncias.

No interior e nas regiões rurais, costumes mais tradicionais se mantiveram ainda por muito tempo. Nesses lugares, o cortejo que saía da casa da noiva era encabeçado pelo noivo – embora houvesse regiões onde a noiva ia na frente – e os padrinhos, que em muitas regiões deveriam obrigatoriamente ser os de batismo. A noiva podia entrar na igreja sozinha ou acompanhada dos padrinhos e não devia ser vista pelo noivo antes de chegar ao altar para não dar chance ao azar. Entre os analfabetos, as mães não assistiam ao cortejo e, em alguns lugares, os pais de ambos os noivos não participavam da cerimônia. Os presentes dados aos noivos em regiões como Trás-os-Montes eram modestos, em geral utensílios de cozinha e, entre os mais pobres, produtos alimentícios.

A prevalência do casamento civil sobre o religioso só ocorreu de fato a partir da primeira década do século XX, embora já estivesse garantida desde 1865-1866 com a redação do Código Civil. A grande resistência da igreja, inclusive com pressão do Vaticano sobre o poder político, retardou a laicização do casamento, que passou a garantir também aos não cristãos o reconhecimento de suas uniões.


José Araujo é linguista e genealogista amador.

Cunhada

Levirato ou levirado – de levir, cunhado em latim – é o nome que se dá ao casamento celebrado entre um homem e a viúva de um de seus irmãos que não deixou descendente do sexo masculino. Trata-se de um costume citado já no Velho Testamento e consta que ainda seja praticado em algumas comunidades da Ásia.

O exemplo que apresento, extraído de minha árvore, não é um casamento levirato, como você poderá constatar pela leitura do assento de casamento exibido abaixo, mas não deixa de ter sua curiosidade.

cunhada
Casamento de Luís Maria e Antonia Rosa – 13/06/1819 – São Miguel de Lobrigos, Vila Real

Aqui a transcrição:

Luis Maria do Nascimento, do lugar de Santa Marta, viúvo que ficou de Maria Benedicta, filho legítimo de José Bento, do reino da Galícia, e sua mulher Maria Theresa, do lugar de Santiago de Fontes, isento de multa, neto paterno de João Antonio Gonçalves e de Maria Gonçalves, do reino da Galícia, feitas as denunciações e [] do breve pontifício em que foram dispensados por ser casado com a irmã da [esposa] abaixo declarada e da [], se receberam com Antonia Rosa, filha legítima de Antonio José Coelho e de sua mulher Ana Joaquina da vila de Santa Marta desta freguesia, neta paterna de Manoel Coelho e de Isabel Maria da mesma vila, e pela parte materna de Manoel Pereira Valente e sua mulher Thereza Angelica, ambos da freguesia de Tarouca, do bispado de Lamego, se receberam, digo, com palavras de presente em 13 de junho de 1819 em minha presença e das testemunhas que [houve muitas] e Francisco Antonio de São Miguel de Lobrigos e o reverendo padre José de Aquino, que para constar fiz este dia mês e ano ut supra.

A partir dessa e de outras fontes pesquisadas, descobri que Luis casou-se com Maria Benedicta em 25 de fevereiro de 1811, enviuvou e casou-se com a irmã dela, Antonia Rosa, em 13 de junho de 1819. No breve período em que foram casados, Luis e Maria parecem não ter tido filhos, pois não foram encontrados assentos de batismo relacionados ao casal. O assento de óbito de Maria Benedicta também não foi encontrado, o que pode significar que ela faleceu em outra paróquia.

Já do casamento com Antonia resultaram dois filhos: Maria Augusta, que depois se casaria com o Tenente Caetano Pinto Rebello e teria oito filhos, e Francisco, que faleceu com menos de dois anos de idade. Abaixo se pode esse ramo da árvore reconstruído a partir das provas documentais.

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Além da curiosidade, o caso aqui descrito demonstra a necessidade da busca de todos os registros disponíveis para a correta elaboração da árvore familiar e narração da história da família.


José Araújo é linguista e genealogista amador.

Abreviaturas

Talvez por se verem assoberbados, talvez por comodidade, certamente por costume, os párocos usavam muitas abreviaturas no registro dos assentos de batismo, casamento e óbito. A quantidade de abreviaturas variava bastante, e dentro de um mesmo livro de registros é possível encontrar textos perfeitamente compreensíveis e outros que demandam algum tempo para serem decifrados.

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