Póstuma

Queridos netos,

Vocês não me conheceram, pois eu já havia partido quando vocês nasceram. Nasci muito antes de vocês, no século XIX, em 9 de junho de 1868. O local, a vila de Barcos, no concelho de Tabuaço, em Viseu, Portugal. Meus pais, Manuel de Araújo Motta e Luísa de Macedo Pinto, se casaram em 1853, quando ele já contava 28 anos, e ela, com 25. Tiveram cinco filhos antes de mim – Luís, José Augusto, Maria Natividade, Manoel e Delfina.

Três anos depois que nasci, meu pai morreu atingido por um raio. Tinha apenas 46 anos. Minha mãe viu-se, então, com a responsabilidade de cuidar de três adolescentes e três crianças, a menor de todos sendo eu, então com três anos. Dona Luísa vinha de uma tradicional família local, na qual havia médicos, militares, padres, proprietários de terra e até uma suposta santa.

Famílias grandes como a nossa não eram raras em Portugal naquela época, mas muitos morriam ainda na infância, na adolescência e até nos primeiros anos da vida adulta – meu irmão Luís, por exemplo, morreu solteiro aos 26 anos, idade em que era normal o homem se casar e ter filhos.

Eu não fui exceção e me casei aos 25 anos com Eliza de Macedo, com quem tive sete filhos antes de virmos para o Brasil. Partimos de Leixões no vapor Heidelberg e chegamos a Santos, onde desembarcamos em 14 de abril de 1905. Eu tinha 36 anos, Eliza tinha 31 e nossa filha mais nova, Delfina, apenas um aninho.

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Porto e cidade de Santos em 1905

Imaginem a aventura que era cruzar o Atlântico em um navio a vapor naquela época e com tantos filhos! Ainda assim, viemos, pois era necessário “fazer a América”. Dois irmãos de Eliza – Vasco e Maximiano – aqui já se encontravam há algum tempo, na localidade que viria a ser conhecida como Nova Iguaçu, mas era então conhecida como Maxambomba.

Em Maxambomba comprei um sítio onde hoje fica a Estrada de Madureira e comecei a me dedicar à lavoura, plantando hortaliças e frutas. A agricultura nos sustentaria, como havia sustentado a nossa família lá em Portugal. Alguns anos mais tarde, José Augusto, meu filho mais velho, com seu grande espírito empreendedor, decidiu tentar a vida por conta própria e saiu de casa com seu irmão Antônio. Para minha enorme tristeza, Antônio seria acometido de tuberculose e morreria ainda jovem algum tempo depois.

José Augusto seguiria em frente com seus planos e, com um empréstimo do tio e padrinho Vasco, compraria um sítio e seguiria meus passos tornando-se agricultor. Seria apenas a primeira iniciativa dele, que mais tarde compraria mais terras e se tornaria um dos citricultores que tornaram a região um grande centro produtor e exportador de laranjas. Esse filho ainda teria uma fábrica de cerveja e, em sociedade com um patrício, construiria casas populares para vender. Em 6 de março de 1917, mais uma desgraça se abate sobre nossa família: minha amada Eliza nos deixa, aos 43 anos.

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Eu aos 50 anos

Eu estava para completar 50 anos de uma vida de muito trabalho, muita disciplina e ainda com filhos que dependiam de mim. Não poderia passar os anos que me restavam no estado de viuvez. Foi então que conheci a bela Josefa Rebosa, uma jovem de 18 anos e olhos sedutores que trabalhava na Cruz Vermelha. Josefa estava noiva de um médico que conhecera, porém rompeu o noivado e, em novembro de 1918, já estávamos casados. Dona Maria Benedicta, minha sogra, não fazia gosto, pois certamente preferia ver a filha casada com um médico e não com um viúvo tão mais velho.

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Josefa com Júlio e a pequena Maria

Josefa e eu tivemos seis filhos. Acredito que eu tenha sido um pai carinhoso, dentro dos padrões da época. Certamente era muito observador e severo e todos os filhos tinham sua contribuição das atividades da casa. Sempre fomos uma família religiosa, mas eu nunca gostei muito de padres – acredito que seja um costume de família desde Portugal.

Nunca mais voltei a Portugal e não costumava falar da vida lá. Aqui no Brasil, sempre trabalhei muito. Nunca fomos ricos, mas vivíamos bem. Meu único orgulho era de estar sempre bem vestido, de botas, chapéu e abotoaduras de ouro que me eram presenteadas pela querida filha Lourdes.

Espero que tenham orgulho de sua história, pois ela será a herança que jamais será retirada de vocês.

Um beijo de seu avô,

record-image_S3HT-6X13-JGN_Batismo de Maria da Penha


José de Araújo é linguista e genealogista amador.

Patronímicos

É fato conhecido que os portugueses são muito mais rígidos na escolha dos nomes dos filhos do que os brasileiros. Não por acaso, existe mesmo uma relação de vocábulos permitidos e proibidos no site do Instituto dos Registos e Notariado que deveria ser consultada pelos pais antes da escolha do nome de seus futuros filhos.

A nuvem de palavras abaixo apresenta 50 dos nomes mais populares em Portugal em 2016. Em geral, são nomes bastante antigos e muitos deram origem a diversos sobrenomes – lá denominados apelidos – que conhecemos hoje, ou seja, tornaram-se patronímicos.

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Nomes mais populares em 2016 – Fonte: Instituto dos Registos e Notariado

Patronímicos são a forma mais antiga de atribuição de sobrenome e se formam a partir da derivação do nome do pai. Na cultura russa, por exemplo, podemos deduzir que um menino chamado Yuri Gregorovich é filho de um Gregoryi. Um caso bastante famoso de patronímico de origem conhecida é o de Afonso I (1109-1185), o primeiro rei de Portugal, que ficou conhecido como Afonso Henriques, pois era filho de Henrique de Borgonha, conde de Portucale, e Teresa de Leão.

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Afonso I (1109-1185)

A lista abaixo relaciona alguns sobrenomes portugueses de fonte patronímica e os nomes dos quais derivaram:

Patronímico(s) Nome(s)
Alves e Álvares Álvaro
Antunes Antão ou Antônio
Bernardes Bernardo
Diegues e Dias Diogo
Domingues Domingos
Esteves Estevão
Fernandes Fernão ou Fernando
Gonçalves Gonçalo
Marques Marco ou Marcos
Martins Martim ou Martinho
Nunes Nuno
Roiz ou Rodrigues Rodrigo
Soares Soeiro
Vasques ou Vaz Vasco

Há ainda patronímicos que se tornaram sobrenomes sem o acréscimo do sufixo -es, tais como Afonso, Braz, Gaspar, Garcia,  Gil e Lourenço, entre outros.

Patronímicos respondem por apenas um caso do complexo sistema de sobrenomes portugueses. Em outro texto falarei de outro caso: os topônimos.


José Araujo é linguista e genealogista amador.

Cunhada

Levirato ou levirado – de levir, cunhado em latim – é o nome que se dá ao casamento celebrado entre um homem e a viúva de um de seus irmãos que não deixou descendente do sexo masculino. Trata-se de um costume citado já no Velho Testamento e consta que ainda seja praticado em algumas comunidades da Ásia.

O exemplo que apresento, extraído de minha árvore, não é um casamento levirato, como você poderá constatar pela leitura do assento de casamento exibido abaixo, mas não deixa de ter sua curiosidade.

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Casamento de Luís Maria e Antonia Rosa – 13/06/1819 – São Miguel de Lobrigos, Vila Real

Aqui a transcrição:

Luis Maria do Nascimento, do lugar de Santa Marta, viúvo que ficou de Maria Benedicta, filho legítimo de José Bento, do reino da Galícia, e sua mulher Maria Theresa, do lugar de Santiago de Fontes, isento de multa, neto paterno de João Antonio Gonçalves e de Maria Gonçalves, do reino da Galícia, feitas as denunciações e [] do breve pontifício em que foram dispensados por ser casado com a irmã da [esposa] abaixo declarada e da [], se receberam com Antonia Rosa, filha legítima de Antonio José Coelho e de sua mulher Ana Joaquina da vila de Santa Marta desta freguesia, neta paterna de Manoel Coelho e de Isabel Maria da mesma vila, e pela parte materna de Manoel Pereira Valente e sua mulher Thereza Angelica, ambos da freguesia de Tarouca, do bispado de Lamego, se receberam, digo, com palavras de presente em 13 de junho de 1819 em minha presença e das testemunhas que [houve muitas] e Francisco Antonio de São Miguel de Lobrigos e o reverendo padre José de Aquino, que para constar fiz este dia mês e ano ut supra.

A partir dessa e de outras fontes pesquisadas, descobri que Luis casou-se com Maria Benedicta em 25 de fevereiro de 1811, enviuvou e casou-se com a irmã dela, Antonia Rosa, em 13 de junho de 1819. No breve período em que foram casados, Luis e Maria parecem não ter tido filhos, pois não foram encontrados assentos de batismo relacionados ao casal. O assento de óbito de Maria Benedicta também não foi encontrado, o que pode significar que ela faleceu em outra paróquia.

Já do casamento com Antonia resultaram dois filhos: Maria Augusta, que depois se casaria com o Tenente Caetano Pinto Rebello e teria oito filhos, e Francisco, que faleceu com menos de dois anos de idade. Abaixo se pode esse ramo da árvore reconstruído a partir das provas documentais.

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Além da curiosidade, o caso aqui descrito demonstra a necessidade da busca de todos os registros disponíveis para a correta elaboração da árvore familiar e narração da história da família.


José Araújo é linguista e genealogista amador.

Sacramentos

Quem leu o texto de apresentação deste blog sabe que o foco é a genealogia luso-brasileira, o que envolve duas nações de fortíssima tradição católica, e os assentos de batismo, casamento e óbito, que exemplificam quase todos os textos, são documentos que passaram a existir oficialmente a partir do Concílio de Trento (1546-1563).

O que talvez não tenha ficado explícito até agora é que esses documentos se relacionam a alguns dos sete sacramentos da Igreja, a saber:

  1. Batismo
  2. Confissão, penitência ou reconciliação
  3. Eucaristia
  4. Confirmação ou crisma
  5. Sagrado matrimônio
  6. Ordens sagradas
  7. Unção dos enfermos

Fica evidente, então, que assentos de batismo estão ligados ao ritual em que se recebem os sacramentos de mesmo nome. Os assentos de casamento, por sua vez, estão ligados aos sacramentos do sagrado matrimônio. Nos assentos de óbito, enfim, era usual que o pároco fizesse menção aos sacramentos que o moribundo havia recebido antes da morte.

Havia quem morresse de repente e sem receber os sacramentos, como no seguinte exemplo, de um tio-avô de minha bisavó paterna:

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Óbito de José Pinto do Souto Rebello – 20/02/1842 – Barcos, Tabuaço, Viseu

Aqui a transcrição:

Aos 20 dias do mês de fevereiro do ano de 1842, morreu José Pinto do Souto Rebello, viúvo que ficou de Bárbara Ribeiro. Não recebeu os sacramentos por morrer de repente. Testou, mas não apresentaram o testamento seus herdeiros, o motivo porque não faço lembrança []. No seguinte dia foi sepultado dentro da igreja de Nossa Senhora da Assunção da vila de Barcos. E para constar fiz este assento que assino. Era ut supra. – o reitor Antonio Rodrigues Pinheiro

Mas o esperado era morrer “tendo recebido todos os sacramentos”, como se vê no exemplo abaixo, de uma filha do tal tio-avô.

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Óbito de Hellena Pinto do Souto – 9/04/1872 – Barcos, Tabuaço, Viseu

Aqui a transcrição:

Aos nove dias do mês de abril do ano de 1872, nesta freguesia de Barcos, concelho de Tabuaço, diocese de Lamego, na casa de número 19, às quatro horas da manhã, faleceu tendo recebido todos os sacramentos da Santa Igreja um indivíduo do sexo feminino por nome Helena Pinto do Souto, de idade de 60 anos, de estado solteiro e profissão proprietária, natural desta freguesia, moradora na Rua da [Cainha], filha legítima de José Pinto Rebello e Bárbara Ribeiro, já defuntos, a qual fez testamento, não deixou filhos e foi sepultada no cemitério público desta freguesia. E para constar se lavrou em duplicado este assento que assino. Era ut supra. – o abade Antonio Augusto Tavares

Se a expressão era “todos os sacramentos”, podemos entender que devia haver mais de um relacionado a esse momento. E de fato havia: ao moribundo, era normalmente ministrado o sétimo sacramento, antes conhecido como extrema-unção, mediante unção com um óleo sagrado.

O moribundo que tivesse condições poderia também confessar seus pecados e pedir a absolvição ao pároco, podendo receber uma penitência, porém o assento abaixo menciona algo mais.

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Óbito de Maria Clara – 9/11/1807 – Barcos, Tabuaço, Viseu

Aqui a transcrição parcial:

Aos nove dias do mês de novembro de 1807, faleceu da vida presente Maria Clara, viúva que ficou de Luis de Amaral, natural desta vila de Barcos. Recebeu os sacramentos da penitência, sagrado viático e extrema-unção e seu corpo foi sepultado dentro desta igreja no dia dez do dito mês em que se lhe fez um ofício de corpo presente. Também fez testamento [fechado] em que dispôs além de outras coisas em quanto ao [] o seguinte: […]

Segundo a Wikipédia, “a palavra viático vem do latim viaticum (de via, caminho), com o significado de provisão para o caminho”, que para a Igreja é “o caminho da terra, a vida corporal, mas também o caminho do céu, ou seja, a entrada, após a morte, na vida eterna”.

O viático nada mais é do que a comunhão eucarística dada a quem está prestes a morrer. O moribundo que pudesse deglutir receberia a eucaristia sob a forma do pão consagrado, enquanto o que não pudesse a receberia apenas pelo vinho.


José Araújo é linguista e genealogista amador.

Fonte: http://www.catolicismoromano.com.br/content/view/162/43/